sexta-feira, 26 de junho de 2015

Ser pastor não é plano B

“Farei dois cursos universitários, Direito e Teologia”, compartilhou-me um jovem. “E por que?”, perguntei-lhe brevemente. “Porque se eu não der certo como advogado, terei um plano B: ser pastor”. Não vi traço algum de brincadeira ou cinismo em sua fala.

Infelizmente o trabalho pastoral é reserva de mercado para muita gente que não se encontrou na vida, que ficou de fora das boas oportunidades em outras carreiras profissionais, seja pela incompetência, seja pela má sorte ou seja pelo esmagamento de um processo competitivo e meritório onde não há mesmo lugar para todos e só os melhores sobrevivem.

Não vejo problema algum nos jovens contemporâneos que sentem alguma “queda” pelo ministério pastoral, mas também entendem a necessidade de uma formação acadêmica mais ampla, que relacione os saberes teológicos com outras áreas do conhecimento humano. Não vejo problema algum em um jovem vocacionado estudar Teologia e Direito, por exemplo.

O problema está justamente na perspectiva do pastorado como um “plano B”, uma saída ao insucesso, ou uma possibilidade a mais para aqueles interessados em explorar seus múltiplos talentos.

Mas alguns espertinhos olham o panorama geral e pensam: “não deve ser muito difícil; é só vestir uma roupa adequada (o terno e a gravata para algumas denominações), citar uns versículos bíblicos nas pregações (que não precisam ser tão bíblicas assim, apenas psicologias motivacionais adocicadas com chavões homiléticos), ter uma postura condescendente e paternal (fazer cara de bonzinho e dar uma de prestativo), ser pulso firme com o pecado dos outros (‘descer o cajado’) e não cair em escândalos morais”.

Além disso, há o problema da simplicidade e credulidade passional de grande parte dos fiéis e as facilidades burocráticas para se “montar” a própria igreja.

Ministério pastoral é vocação específica. Ponto final! Não é oportunidade para se “tentar a sorte”, um meio de se dar bem ou um lugar de “sombra, água fresca e maré mansa”. Ser pastor não é uma experiência para aventureiros ou figuras interessadas em experimentar, no “ramo” pastoral, suas habilidades empreendedoras ou suas capacidades de liderança. Pastorear não é recurso de autoafirmação ou plataforma para a performance de personalidades narcisistas e ególatras. O pastorado não é para quem quer seja lá o que for, não é um meio para nada, é um fim em si mesmo.

 O pastorado é ofício de pessoas (sejam homens ou mulheres) que possuem a profunda consciência de que não poderiam fazer outra coisa na vida, de que esta é a sua missão essencial e nela encontram sentido e felicidade existencial.

Ao ler o meu texto, um inteligentinho esquerdista “evangelicofóbico” (desses que gostam de incitar a opinião popular contra os evangélicos) poderá dizer: “vendo?! Os pastores são um bando de oportunistas, aproveitadores da ingenuidade dos fiéis, usam a fé como negócio.” Mas essa figura não percebe o redutivismo maldoso que comete ou o preconceito generalizador de seu comentário. A maioria dos pastores é gente séria, vive com o necessário, não anda de carro importado, não rouba dinheiro dos fiéis, não estimula a intolerância religiosa ou de qualquer espécie, não se imiscui com jogadas políticas escusas, não manipula a consciência, não infantiliza seus liderados. Agora, tem “pastor” canalha? Tem! Assim como tem médico canalha, advogado canalha, jornalista canalha e por aí vai. A canalhice em todas as esferas da atividade humana. O problema é essencialmente moral e nada tem a ver com ser evangélico  ou católico, de esquerda ou direita, negro ou branco, hetero ou gay.

Bem, eu acredito em vocação pastoral! Acredito que quem é “pastor de verdade” não precisa se envergonhar de ser pastor (“excelente obra almeja”), não precisa procurar outros ofícios e profissões para fazer seu pastorado ser mais aceitável socialmente (a não ser, é claro, que as condições financeiras da comunidade que pastoreia, o exija). O pastorado é uma carreira bonita, sim; o pastor deve se orgulhar por ser sustentado generosamente por sua igreja, sim; e a comunidade de fé deve se sentir feliz e agradecida, sim, por ter um pastor que cumpra com honestidade a sua vocação.


No entanto, as afirmações do nosso penúltimo parágrafo valem para um “pastor de verdade”, repito. Esse negócio de pastor como plano B é um problema, antes de tudo, moral e não vocacional. Para quem se enquadra nessa situação, meu conselho é: tente outra coisa!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

"Pastor, posso ou não posso?": Sobre a hiperdependência pastoral

O irmão João quer vender o seu carro. Marca uma conversa de gabinete com o seu pastor para tratar o assunto. "Não venda não, isso é consumismo! Seu carro aguenta mais dez anos". Mas um parente do pastor se interessa pelo carro do irmão. Aí, volta a ovelha ao gabinete, mas agora o conselho é outro: "Meu filho, Deus me falou que é pra você vender o carro (e ainda indica o comprador, que vocês, leitores, imaginam quem seja!).

Piada? Não! Coisas como essas acontecem nas mais variadas formas. É o que chamo de hiperdependência pastoral, mal
do qual sofrem muitas ovelhas evangélicas. Eu também poderia chamar esse problema de hiperintromissão pastoral na vida alheia, "doença" que acomete muitos pastores.

Há um limite para as interferências pastorais na vida pessoal de seus liderados. Esse limite não pode ser violado em nome das prerrogativas pastorais do aconselhamento e da mentoria, ou com base no argumento da "cobertura espiritual". E todo membro inteligente de igreja deve se proteger do abuso de autoridade pastoral. E todo membro inteligente de igreja deve agir como adulto, tomar suas decisões de modo livre e racional, deixando se guiar, em última instância, pela consciência do Evangelho, não por intermediários. E todo membro inteligente de igreja deve abandonar qualquer tipo de dependência infantil de qualquer "autoridade sacerdotal eclesiástica".

Há membro de igreja que não dá um passo na vida sem consultar seus oráculos, seus gurus espirituais (pastor, missionária, bispo, bispa, irmã do reteté, irmão que sobe monte). "Caso ou não caso?; estudo ou não estudo?; viajo ou não viajo?; bebo água ou refrigerante?; meu filho deve se chamar Pedro ou Manoel?". Será que os gurus e os "ungidos do Senhor" possuem algum acesso a Deus que algum cristão comum não tenha? Será que a Bíblia deles possuem ensinamentos que os demais leitores não sejam capazes de ler? Será que as orações desses "mediadores" chegam a Deus via Sedex, enquanto as súplicas do povo vai ao trono da graça via jumentinho? Ou será que Deus é mais predisposto a ouvir as orações dos engravatados e eclesiasticamente investidos de autoridade?

Eu desconfio que falta a uma boa parcela da massa evangélica brasileira o conhecimento da herança teológica e doutrinária da Reforma Protestante. As ênfases do reformadores, dentre outras várias abordagens. eram: os cristãos, todos eles, são um Reino de sacerdotes, com iguais direitos de acesso ao Santos dos Santos pelo novo e vivo caminho aberto pelo véu; a Bíblia deve estar ao alcance dos leigos em língua vernácula; somente Jesus é o mediador entre Deus e os homens.

Há pastores, a gente sabe disso, que se aproveitam dessa consciência religiosa infantilizada de suas ovelhas para exercerem sobre elas um domínio e uma manipulação que não lhes são permitidos. Para os imperadores eclesiásticos interessa a manutenção desse status quo, baseado no paternalismo e na condescendência. Não querem que o rebanho alcance a maturidade, a liberdade da mente e do espírito que a consciência elevada do Evangelho traz. Porque um povo passional, mimado, infantil, clericalmente dependente, é um povo mais facilmente controlado, é gente que aceita como autoridade final a palavra do pastor e não a Palavra de Deus.

Meses atrás, um jovem membro de uma igreja me procurou para uma conversa. Ele estava meio perturbado, inquieto...

- Quero muito fazer uma faculdade, mas não posso - introduziu ele.
- Por que não?
- Poque meu pastor disse que se eu deixar as atividades semanais da igreja para estudar, estarei pecando e atraindo maldição sobre mim.
- Mas você deve estudar! - respondi de modo firme.
- Mas, nesse caso, não estaria desobedecendo ao pastor? Assim, eu não estaria desagradando a Deus?
- Você agradará a Deus desobedecendo seu pastor, nessa questão.
- Como assim?
- Nenhuma autoridade pastoral despótica e abusiva agrada a Deus. "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneceis firmes e não vos sujeiteis outra veza um jugo de servidão". Toda dominação de consciência que imponha a alguém obrigações e jugos que nada tem a ver com a liberdade do Evangelho puro e simples é diabólica.

O moço está estudando Engenharia Civil. Com a graça de Deus e para a glória de Seu Nome se tornará um excelente engenheiro. Eu espero que ele construa igrejas, muitas delas, que não sejam gaiolas da consciência, mas bosques onde os filhos de Deus vivam a liberdade do Espírito de Cristo.

sábado, 6 de junho de 2015

Pastor: produto de (final) de feira

Esta é a sensação que tenho quando observo em que o ministério pastoral se tornou em muitos contextos dessa nossa igreja evangélica brasileira: descaracterização, vulgarização, barateamento.

Vou tentar, caro leitor, explicar o que isso tem a ver com o título que coloquei acima. Na tradicional feira de sábado em Itaperuna, onde os agricultores vendem seus legumes e frutas, a gente tem uma oportunidade de ver os amigos, comprar coisa boa a preço bom, comer pastel com caldo de cana, em meio ao empolgante falatório e mistura de rostos, cores e cheiros. É bom! Quando vai chegando o final da feira, os feirantes ficam mais "generosos", querem voltar para casa com os caixotes vazios e aí é hora de comprar três dúzias de bananas pelo preço de uma. Vai ficando tudo mais barato...

Vejam, nunca foi tão fácil ser pastor. Aliás, ser pastor é algo tão barato e comum (banana nanica no final de feira) que a moda agora (para os "vocacionados" espertalhões) é ser apóstolo, arcanjo, patriarca e outros títulos mais honrosos, de maior expressão. "Para mantermos nossos distintos privilégios, temos que criar títulos de distinta honra", está aí a filosofia da coisa. Banalidade pura...

"O mercado religioso está repleto de milagreiros, de gente produzindo respostas, e todos eles dizem ter credenciais outorgadas por Deus" (Eugene Peterson).

Adolescente, Ensino Médio concluído, não divisava outro horizonte a não ser o Seminário Teológico e o ministério pastoral. Não me ocorria nenhuma outra inclinação, nenhum interesse significativo por Medicina, Direito ou Engenharia. Apaixonado por Bíblia, por púlpito e por gente, percebia em mim (não por "profecia" alguma, mas por convicção pessoal) uma vontade, ou talvez aquilo que Aristóteles chama de "potência", de ser pastor. Acho que por isso o rumo das coisas me entristece tanto... 

Mas hoje vivo em plena crise, tentando manter viva a vocação e discernir com maior clareza que é ser pastor no meio do nevoeiro que existe. Nessa luta pela afirmação de uma identidade biblicamente pastoral, Eugene Peterson (um dos pastores com quem mais aprendo o que é ser pastor) tem me ajudado bastante. Peterson, em sua autobiografia "Memórias de um Pastor", conta que o desabrochar de sua vocação pastoral ocorreu não sem muita crise. Crise porque, durante sua infância e adolescência, a imagem de pastor que foi se internalizando em sua consciência era a pior possível. Na comunidade eclesiástica onde ele foi criado (uma Assembleia de Deus interiorana nos Estados Unidos), os pastores não ficavam o tempo suficiente para construírem relacionamentos verdadeiros com as ovelhas, seus conselhos tinham tons de condescendência, superioridade e paternalismo, seus sermões eram teologicamente pobres, repetitivos, chatos. Ele mesmo confessa:

"Não dera muita sorte com os pastores que tive. Não gostava da maneira condescendente com que eles me tratavam, não gostava do tom clerical com que pregavam e oravam, não gostava dos clichês que infectavam o vocabulário deles. A religião, da forma que eles a apresentavam, não tinha seiva. [...] Eu respeitava as Escrituras. Jesus para mim era assunto sério. A igreja também, assim como a oração, mas não os pastores. Em geral, eles pareciam não ter nada a ver com tudo isso".

Ser pastor era a última coisa que Peterson escolheria. Por isso, quando Deus o surpreendeu, irrigando com as gotas da Sua vontade soberana as sementes da vocação pastoral plantadas em seu coração, Peterson relutou, a princípio, pois tudo isso lhe era paradoxal demais. Ele assumiu o seu chamado, estando disposto a aprender, na experiência desafiadora, relacional e crítica de pastoreio de uma comunidade local, a ser um pastor segundo o coração de Deus e não um profissional da religião, a conceber o pastorado como uma vocação espiritual e não "uma oportunidade de negócio que atenderia ao gosto de consumo de pecadores".

Círculos denominacionais mais ligados à Reforma e também alguns pentecostais históricos buscam preservar a dignidade do ministério pastoral ainda, seja preparando melhor teologicamente seus pastores, seja mentoreando-lhes espiritualmente mais de perto, seja avaliando melhor suas reais condições de serem pastores de almas. Mas em outros contextos, especialmente em grupos neopentecostais ou neopentecostalizados (não estou generalizando aqui), não há muitos critérios bíblicos. Além do pragmatismo mercadológico, do profissionalismo, do marketing pessoal e do oportunismo financeiro, destaco outras coisas que ridicularizam o pastorado: 

a) pastor, não como vocação específica, mas como patamar em uma escala hierárquica denominacional;
b) a ordenação pastoral como troca de favores, pagamentos ou gratificações por parte de líderes manipuladores e narcisistas (é o caso de pastores presidentes que consagram outros pastores a fim de terem mais aliados políticos e bajuladores em seus governos autocráticos);
c) pastores sendo ordenados por questões de poder econômico ou influência política e social (o fato de alguém ser um Juiz de Direito já o torna automaticamente um forte candidato ao ministério?);
d) a indolência e a ociosidade de muitos pastores;
e) os escândalos morais de larga repercussão;
f) a falta de preparação teológica formal e o analfabetismo bíblico;
g) a superficialidade da devoção espiritual;
h) a manipulação inescrupulosa de textos bíblicos para defesa de vontades pessoais por parte de pastores autoritários ou oportunistas, dentre outras coisas.

Um pouco antes de escrever esse texto, apaguei uma mensagem da minha caixa de e-mail. Tratava-se de um anúncio em letras garrafais: 

CURSO DE PASTOR! REALIZE SEU SONHO E ABRA SUA PRÓPRIA IGREJA! OFERECEMOS DIPLOMA E CREDENCIAL RECONHECIDA INTERNACIONALMENTE!

Sei que os pastores mais éticos e conscienciosos ficam indignados. Há muitos pastores que eu me recuso a reconhecê-los como tal. Há muita coisa que deixa os pastores de verdade envergonhados. E infelizmente, a sociedade secular é impiedosa e não faz distinção em seus julgamentos: "é tudo farinha do mesmo saco". E como agravante, temos o fato de que a maioria da manada é simplória, massa precariamente evangelizada e que pouco se importa com as reais competências de seus pastores, desde que estes funcionem como bons gurus espirituais e garantidores de bençãos desejadas (o perfil do pastor é o perfil de sua igreja). Aí, aos pastores de compromisso e de vocação, só lhes resta suportar, aguentar firme e buscar inspiração em exemplos que prestam.

Particularmente, a vida pastoral de Jesus, a doutrina pastoral de Paulo e a teologia pastoral  de Eugene Peterson têm sido bússola na minha vivência vocacional. Não seria justo da minha parte, se esquecesse de mencionar o querido Padre Zóssima (personagem de "Os Irmãos Karamázov" de Dostoiévski), cuja sabedoria pastoral me toca essencialmente toda vez que leio essa monumental obra dostoievskiana. Em Zóssima encontrei um sopro renovador da beleza e da profundidade de ser um pastor de almas.





Referências: Todas as citações de Peterson foram extraídas de sua obra Memórias de Um Pastor, publicado no Brasil pela editora Mundo Cristão.