Thalles Roberto, com seu redirecionamento vocacional para o mercado da música secular e suas declarações "nabucodonozorianas" ("vejam a grandeza da minha glória, tudo o que conquistei com a força do meu talento superior ao de todos os demais da música gospel), deixou muitos evangélicos com o coração dolorido. Diversos cantores já reconhecidos no mundo evangélico se posicionaram, uns com aquele discurso de "o que vem de baixo não me atinge", e outros com falas condescendentes e misericordiosas, do tipo "estamos prontos a lhe perdoar, quando você se converter de verdade".
Na verdade, essa mágoa e ressentimento de um expressivo número de evangélicos com o Thalles revela a imaturidade e a ingenuidade dessa gente. Eu estou aplaudindo o cantor rebelado até agora. Sabe por quê? Porque ele fez um grande favor ao movimento evangélico brasileiro. Mas, de fato, muitos fiéis não conseguiram ver a coisa por essa janela, o que confirma o pensamento que lê-se em O pequeno príncipe: "o essencial é invisível aos olhos".
O que o Thalles fez, e nisso ele prestou um grande serviço aos evangélicos que querem crescer, foi desmascarar ainda mais a ilusão que se chama "música gospel brasileira". Ao revelar os próprios pecados, ele colocou o dedo na ferida de todos os envolvidos no esquema. É por isso que, imediatamente, muitos cantores gospel fizeram questão de dizer "ai!" nas redes sociais e proteger o seu self-marketing com uma conversinha defensiva, como "ele é ganancioso, é isso, é aquilo, mas graças a Deus não sou como ele".
Thalles abriu novamente o espaço de discussão para que os evangélicos pensantes possam gritar mais uma vez e, quem sabe agora, serem ouvidos por alguns: "a música gospel no Brasil é business". Fiquem calmos, sei que há cantores evangélicos, cujas obras são expressões da arte cristã e da adoração a Deus, com sinceridade profunda e estética admirável. Mas estes, não são famosos, não vendem milhares de cópias, não ganham fortunas com cachês altíssimos; suas músicas são os acordes e os tons de uma consciência de vocação, de um chamado ao discipulado.
Muitas comunidades evangélicas agora estão se sentindo traídas, porque construíram toda a sua filosofia de dinâmica e crescimento de igreja sobre o ideal de culto modernizado com sua música gospel contemporânea. Se sentem traídas porque uma das estrelas em evidência, representante dessa categoria musical, demonstrou explícita e implicitamente, que o "ministério" desses "levitas" não passa de negócio, e a música que cantam, de produto de mercado.
A partir da década de 90 do século passado, por fatores diversos que não podemos discutir nesse texto, os evangélicos embarcaram em uma locomotiva de crescimento numérico que continua até hoje a todo o vapor. Segundo dados do IBGE, em 1991 somente 9,05% da população brasileira se identificava como evangélica. No censo publicado em 2000, 15,4% dos brasileiros declararam ser evangélicos. Uma década depois, conforme nos mostrou o censo 2010, o cenário religioso brasileiro sofreu uma redefinição incrível: o Brasil tem 22% de pessoas que seguem alguma denominação evangélica. É um crescimento explosivo de 61% em apenas 10 anos. Se as previsões do filósofo Luiz Filipe Pondé (PUC-SP) estiverem corretas, "o país, continuando na mesma batida, terá uns 50% de população evangélica em poucos anos" (Folha de SP, 22/06/2015).
O que esses dados têm a ver com a música gospel? Trago ao meu leitor uma resposta dada por alguém que pesquisou o assunto, o doutor em Ciências Sociais Robson de Paula (UERJ). A longa citação justifica-se por sua importância na compreensão das ideias que exponho aqui.
"Tal crescimento, além de ressoar em diferentes esferas e segmentos sociais, também produz impacto na esfera do consumo. Com o objetivo de atingir esse segmento religioso, um conjunto de empresas de diferentes áreas especializou-se na produção de 'produtos evangélicos', criando, conseqüentemente, um nicho específico no mercado nacional. [...] No conjunto dessas empresas, destaca-se a indústria fonográfica evangélica. A partir dos anos de 1990, por iniciativa de alguns empresários ou denominações evangélicas, foram fundadas grandes gravadoras no país. Nessa década, a Line Records, a Gospel Records, a TopGospel e a MK Publicitá, juntamente com as rádios do segmento, passaram a imprimir um estilo industrial na produção, na divulgação e distribuição de álbuns em todo território nacional. Como contrapartida dessa atuação mais industrial das grandes gravadoras, ocorre a formação das celebridades. Até os anos de 1990, a maioria dos cantores evangélicos, salvo raras exceções, alcançava somente uma pequena e restrita audiência. Com a fundação das empresas fonográficas, alguns tornaram-se celebridades em decorrência da distribuição sistemática de seus álbuns e do acesso facilitado às mídias evangélicas".
O que Robson de Paula está dizendo, em síntese? O crescimento significativo dos evangélicos criou as condições ideais para a formação de um mercado dirigido para este segmento religioso, desencadeando o processo de industrialização e massificação da música tocada e produzida pelos evangélicos no Brasil. Tal processo se expressa na constituição das grandes gravadoras, no surgimento das celebridades, na variedade de locais nos quais a música é executada e na diversificação dos ritmos. Como evangélico tradicional não consome "música do mundo", os espertos perceberam o negócio fabuloso de vender "música de Deus" para essa massa consumidora em potencial.
As músicas que muitos evangélicos estão cantando em seus cultos, majoritariamente, não são adorações inspiradas, mas produtos comerciais que correspondem a uma lógica de mercado e a uma tendência do gosto do público consumidor. Por favor, não vá me dizer que você pensava que a Som Livre se converteu a Jesus? O slogan "Você adora e a Som Livre toca" é uma jogada de marketing estratégica, revestindo o consumo de produtos religiosos, bem como a inciativa da própria empresa, com uma roupagem espiritual e com um motivo devocional, cúltico.
Termino, apenas indiciando, timidamente, o dever de casa dos evangélicos agora. Deverão sair dos cultos, ir para as suas casas e refletir o quanto aquilo que cantam individual ou coletivamente é nada mais do que produto de consumo massificado, artificial, sem integridade bíblica e profundidade espiritual, articulado com os interesses dos empresários e as tendências do mercado. Não estou sugerindo que o evangélico consciente deva destruir seus Cd's e DVD's dos famosos do mercado gospel. Minha sugestão singela é: ouça essa turma como se estivessem ouvindo qualquer outro cantor e músico secular. Isso mesmo, é tudo produto comercial; a diferença é que a música gospel usa o nome de Deus ou de Jesus ou do Espírito Santo, dando a impressão ilusória de que são mais santas, inspiradas, dádivas de louvor ao Criador. E, ainda quanto ao dever de casa, as denominações evangélicas brasileiras precisam passar por um tratamento de desintoxicação do produto químico chamado gospel. Os nossos cultos estão extremamente poluídos e contaminados. "Há morte na panela, oh povo de Deus!". Devemos repensar as músicas para a nossas liturgias, para a nossa devoção pessoal, para a nossa práxis evangelizadora.
Thalles, meu querido, que muitos outros famosos do gospel sigam seu exemplo, e usem o seus talentos para ganhar muito dinheiro e ficar ainda mais famosos; só que sem usar o nome de Deus e a paixão religiosa das pessoas.
Escrito por Jonathas Diniz em 21/07/2015 - Ipatinga/MG
Referência: DE PAULA, Robson. Os Cantores do Senhor: Três trajetórias em um processo de industrialização da música evangélica no Brasil. Revista Religião e Sociedade, nº 27, ano 2007, pp. 55 a 84. Disponível em: http://scielo.br/scielo.php?pid=S0100-85872007000200004&script=sci_arttext.
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