quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

4 erros que um reformado não deve cometer


Um jovem procurou-me, dizendo que redescobriu o Evangelho de Jesus Cristo, através da herança teológica e doutrinária da Reforma Protestante do século XVI. Ele está bem empolgado, lendo avidamente escritos dos grandes ícones desse movimento, como Martinho Lutero e João Calvino.

Há mais de dez anos venho estudando a Reforma, sob o ponto de vista histórico, teológico e doutrinário, e também lidando, como pastor e professor, com as questões que vão sendo levantadas quando nos propomos a transportar as ideias dos reformadores para os desafios das igrejas evangélicas brasileiras na atualidade.

Com base nesse histórico pessoal, atrevi-me a desempenhar o papel de conselheiro e apontei-lhe os quatro erros que um reformado não deve cometer.

Primeiro: um reformado não deve ser teologicamente orgulhoso. Todo cristão que se diz reformado deve ler repetidas vezes I Coríntios 13. Nenhum conhecimento, habilidade alguma, obra nenhuma, nada disso é válido sem o amor. O amor é a legitimação ética e espiritual de todas as nossas palavras e obras. Usar-se do título de “reformado” para depreciar e humilhar a crença de alguém é contrário ao espírito da Reforma. Dizer que A é alguém ignorante, alienado, mentalmente limitado porque não chegou as mesmas compreensões teológicas e doutrinárias de B, é banalidade pura, vaidade, pecado. Lutero, em seu livro “Da liberdade cristã”, descreve a maneira como o cristão deve se relacionar com Deus e com o próximo: pela fé em Deus o cristão é livre; pelo amor ao próximo é servo de todos. João Calvino, sabiamente, escreveu: 

“Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se ponha num nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A genuína base da humildade cristã consiste, de um lado, em não se presumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos; e, de outro, se Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à conta da divina Graça”. João Calvino, Exposição de 1 Corintios (1 Co 4.7), pp. 134,135

Segundo: um reformado não deve ser chato. Tem gente que descobre a Fé Reformada e passa a ser um catequista importuno. Qualquer momento ou qualquer lugar torna-se uma ocasião para suas longas exposições teológicas e debates doutrinários intermináveis. É legal citar os livros que lemos, os vídeos que assistimos, as conferências das quais participamos. Mas fazer disso um ritual massacrante, um “disco arranhado”, uma doutrinação forçosa das pessoas, deve incomodar até mesmo os reformadores em seus túmulos. Mais uma vez, recorri às orientações do próprio Calvino, a fim de ancorar este segundo conselho ao jovem reformado: "“Porque o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida” (As Institutas – edição Especial, Vol IV, pg 181, Ed CEP). Não será melhor, portanto, deixar que a fé reformada se expresse naturalmente pelas obras que glorificam a Deus do que pelos falatórios vãos? 

Terceiro: um reformado não deve ser beligerante. Os reformadores não almejavam aproximar os cristãos de seu tempo das Escrituras e, consequentemente, do Evangelho autêntico de Jesus Cristo. Contradiz, portanto, os princípios da Reforma qualquer postura agressiva, raivosa, hostil, que afaste as pessoas de Cristo, que as leve a odiar qualquer referência à palavra “igreja”. É importante a crítica sensata aos absurdos que se prega e que se faz em muitos círculos ditos “evangélicos” nos nossos dias. É importante expressar o sólido conteúdo bíblico e teológico da Reforma, com coerência e clareza. Contudo, um reformado deve se abrir ao diálogo, ouvir os diferentes pensamentos e não “partir pra cima”, nocauteando o oponente. Já vi “reformados” vencendo debates, mas perdendo bons amigos. Lutero sustentava que a Reforma deveria ser obra da Palavra e não da imposição violenta. A descoberta do Evangelho que revolucionou a vida de Lutero veio do simples estudo pessoal das Escrituras, quando o reformador deparou-se com essas palavras: “O justo viverá por fé” (Rm. 1.17).

Quarto: um reformado não deve ser omisso. No tópico acima, condenei o espírito beligerante. No entanto, ser pacífico e tolerante com a pluralidade de ideias não significa ser covarde. “Pois Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio. Portanto, não se envergonhe de testemunhar do Senhor...” (conselhos de São Paulo ao jovem Timóteo em I Timóteo 1.7-8). A covardia, aqui, se traduz em omissão vergonhosa - derivada da fraqueza de personalidade, de uma fé insipiente ou de um desvio de caráter – que leva alguém a se conformar quando deveria reagir, a se calar quando deveria falar. Na “sociedade líquida” na qual vivemos ficou fora de moda ter convicções, pois soa como fundamentalismo, extremismo, intolerância. Então, para ser simpático e agradar a gregos e a troianos, há aquele que perde as oportunidades de dar testemunho do Evangelho puro e simples.  Em abril de 1521, após ter sido excomungado pela Igreja, Lutero foi convocado à cidade de Worms, onde, diante de uma assembleia de nobres e príncipes que governavam como o Imperador, deveria retratar-se de seus ensinamentos. Diante daquela assembleia, o reformador respondeu: “Não posso nem quero me retratar de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é justo nem seguro. Deus me ajude. Amém”.

Esses conselhos, embora bastante incompletos, podem ser discutidos, ampliados e repensados, a fim de servir à maturidade espiritual e teológica dos que estão saindo da caverna de suas limitadas compreensões sobre a fé cristã, - compreensões estas, muitas vezes controladas por rígidos sistemas denominacionais fechados e cerceadores do pensamento -,  e encontrando um mundo lá fora, amplíssimo e iluminado pela sabedoria que vem sendo acumulada por gerações de cristãos frutos da Reforma. 
     


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Os Pentecostais Estão Descobrindo o Calvinismo (Parte 2)

No primeiro texto (leia aqui), discuti brevemente sobre a recente onda calvinista que parece estar chegando com força nos territórios pentecostais, especialmente entre os grupos mais jovens.

Nada do que escrevi, o fiz de um ponto de vista científico. Não levantei dados, não realizei pesquisa de campo ou coisa parecida. Quem sabe esse poderia ser um bom trabalho para um cientista da religião.

Mas quando digo que os pentecostais estão descobrindo o calvinismo, estou me baseando na "intuição", nessa percepção livre da realidade, nesse olhar ao redor, no bate-papo informal com muitos jovens evangélicos, nos debates em plataformas virtuais, nos posts em redes sociais.

Muitos jovens com os quais convivo, de origens pentecostais, estão buscando alguma coisa a mais. Ou talvez melhor seria dizer que eles estão buscando o que sentem que se perdeu nas expressões diversas do pentecostalismo brasileiro?

Porque, antes de tudo, parece que esse caminho em direção à fé reformada tem sido um curso natural de um processo de reencontro com o cristianismo puro e simples, conforme ensinado pelos apóstolos de Jesus e redescoberto pelos reformadores cristãos. Não soa como algo forçado, mas como uma desejo efervescente de viver uma espiritualidade cristã mais próxima às Escrituras.

Assim como na época da Reforma Protestante do século XVI a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutemberg foi um fator crucial para que o movimento se expandisse pela Europa, hoje, a internet tem sido um instrumento poderosíssimo na capilarização das ideias reformadas em nosso solo.

Além da facilidade de circulação de ideias que a Rede possibilita, estamos diante da fragilização doutrinária do pentecostalismo por aqui, da sua capacidade impressionante de metamorfose e criação de formas litúrgicas estranhas e novos estilos de liderança, do seu sincretismo folclórico cada dia mais inovador. Tudo isso prepara o terreno para que a turma mais questionadora se sinta desconfortável e procure por novos caminhos por onde trilhar a fé cristã; caminhos estes que conciliem uma fé vibrante com uma mente pensante, que não superestimem a experiência em detrimento da coerência com todo o ensino de Jesus e dos apóstolos.

Esse processo é saudável. Porque o que me parece que se deseja não é um ataque demolidor das religiosidades pentecostais. Pelo menos, até os limites daquilo que tenho visto e ouvido, quando um pentecostal se interessa pela fé protestante reformada, ele não está querendo dizer apenas que se opõem ao pentecostalismo. Pode sim ter um viés de insatisfação com a mediocridade teológica e espiritual que se percebe em alguns segmentos. Mas não somente isso. Há, sobretudo, a fome de radicalidade, no sentido de "radix", voltar à raiz, conhecer e experienciar a fé cristã com mais profundidade nas Escrituras e na rica tradição teológica e doutrinária da Reforma Protestante.

 Alguns debates importantes estão surgindo e se ampliarão. É interessante, agora, aguardar a resposta das imperiosas instituições pentecostais do país. Como reagirão a esse processo? Criarão uma espécie de Contra-Reforma, um combate aos hereges calvinistas, um Index Proibitorium? Ou aproveitarão o momento para repensarem algumas posturas e ideias?

Alguns andam dizendo que os grupos pentecostais já não têm nada mais a contribuir com evangelicismo brasileiro. Penso diferente. É um tempo privilegiado de amadurecimento. O tempo de crescimento quantitativo já acabou. Os pentecostais precisam é aprimorar suas estruturas internas, investir na formação de lideranças bíblica e teologicamente capacitadas, abandonar velhas roupagens descontextualizadas, adequar a linguagem e a pregação aos desafios do nosso tempo, limitar o espaço para a introdução das bizarrices espiritualistas, enfatizar uma espiritualidade bíblica.

Os jovens "pente-calvinistas" têm muito a contribuir com as igrejas pentecostais, caso aqueles tenham paciência e humildade, e caso estas não levantem muralhas rígidas e ameaçadoras, mas abram os portões do castelo para o debate e a reflexão.


Ditadores da Alma


Ditadores da alma
Que legislam sobre tudo
Impõem vossas leis
Sobre o coração de todos

Ninguém escapa
O jovem ou o maduro
Sofrem os vossos ditames
Vossos reféns são todos os homens

Submeteis a razão
Fazeis dela vossa escrava
Já destronastes príncipes e reis
Já derrotastes vigorosos combatentes
Já confundistes até os sábios e inteligentes

Invasores da alma
Derrubastes os muros tantas vezes
E invadistes o castelo
Abatendo, triunfante,
As torres de vigia
Numa guerra covarde

Uma cavalaria imponente
Pisoteando as almas vacilantes
Não te importas com o choro dos inocentes
Tampouco com a dor das mulheres

O que queres mais?
Já provastes que podes muito
Levas teu prisioneiro ao paraíso
Ou aos submundos infernais

Em teu nome gente comum já foi herói
E o homem bom ficou cruel
Embebeda a todos
Com teu mel
Com teu fel

Quantos fortes
Viram fantoches em vossas mãos?
Qual o preço da vossa servidão?
Será o amor, o rancor
O ódio ou o perdão?

Quem sois?
Hora anjos, hora demônios?
De onde vens?
Habitais hora no Éden, hora no Hades?
Frutificais alegrias e sofrimentos

Os homens vos chamam de SENTIMENTOS

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Uma menina à mesa do Senhor

Participava eu de uma celebração da Santa Ceia em uma igreja de tradição protestante reformada. Uma liturgia belíssima e uma preparação irreparável envolviam todos os presentes no mistério da morte redentora de Cristo pelos homens aos quais Deus chamou para a salvação.

Uma menina, com idade aparente de 2 anos, assistia tudo sentada ao lado de uma mulher jovem que, acredito, era a sua mãe. De repente, impulsionada pela curiosidade típica de uma criança, ela desceu do banco e correu à frente da igreja, onde estava a mesa com os elementos sagrados da Ceia. 

 Conseguindo agarrar as mãos na borda de um dos lados da mesa, esticou-se o máximo que pode, sustentando-se na pontinha dos dedos do pé, como uma bailarina, a fim de ver de perto o pão e o cálice. 

Ela ficou ali por alguns segundos, olhando vividamente, sem tocar em nada. Apenas olhava a forma bela como os elementos estavam arrumados sobre a mesa. Graças a Deus, nenhum diácono precipitado arrancou-a de lá. Seus pezinhos doeram e ela, então, voltou e sentou-se novamente ao lado da mãe. 

Foi um espetáculo belíssimo. Nenhuma Santa Ceia me tocou tanto. Foi a aproximação mais encantadora que eu já vi ao Sagrado. 

Chorei, como menino, lembrando-me do Cristo que acolhe todas as crianças, que as abriga em seu misericordioso coração, que recebe o perfeito louvor que sai de seus lábios: "Deixai os pequeninos, e não os impeçais de vir a mim, porque dos tais é o Reino dos Céus." (Mateus 19.14).

Lamentei, lembrando-me das crianças que não têm lugar a mesas onde encontrem alimento, amor, comunhão, dignidade. Crianças apartadas de todo tipo de afeto, que não são bem-vindas em suas próprias casas, Crianças violentadas, inclusive, por motivos religiosos.

Consolei-me, na sensação da misericórdia que há no mundo, aparentemente tão pequena frente a tanta maldade, mas que é real. Há pessoas e projetos sérios em todos os cantos, comprometidos em acolher, educar, curar, alimentar crianças. São "braços" de Cristo protegendo e cuidando. São "ninhos" de Deus. Recordei-me da rica metáfora poética do escritor canônico:

Até o pardal encontrou casa, e a andorinha ninho para si, e para a sua prole, junto aos teus altares, ó Senhor dos Exércitos, Rei meu e Deus meus." (Salmos 84.3).

Imaginei Jesus sorrindo, olhando para a menina e, tomando-a como representante, dizendo a todas as crianças, tanto as que riem quanto as que choram, tanto as de longe, quanto as de perto: "Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos pardais."(Mateus 10.31).