quinta-feira, 21 de maio de 2015

Nunca Ganhei uma Alma


Lendo Dostoiévski, descobri que na Rússia czarista os servos eram chamados de "almas". Media-se a riqueza de um homem pela quantidade de almas que tivesse. Num repente, veio a mim a relação entre esse dado e uma questão soteriológica da qual passarei a tratar a seguir.


Cresci ouvindo que todo bom cristão deve ser um ganhador de almas. Aí está a riqueza de um homem perante Deus. O trecho da canção "Despertar para o trabalho" ilustra bem essa crença:

"Posso tendo as mãos vazias,
Com Jesus eu me encontrar?
Quantas almas poderia
Ao Senhor apresentar?".

Cada vez que ouvia essa canção sentia um arrepio. Na minha imaginação infantil, Deus, no final de tudo, faria como uma cigana que nos pede as mãos para lê-las. Eu tinha que me esforçar para levar amigos pagãos à igreja, pois os seus nomes seriam magicamente gravados nas minhas mãos (um tipo de tatuagem invisível).

O primeiro livro de Homilética que li foi José da Silva, um pregador leigo, por volta, talvez, dos meus oito anos de idade. O livro enfatizava a importância do apelo como a cereja do bolo, o pedrinha de brilhante do anel de ouro, o acabamento final e indispensável de qualquer sermão, pois o objetivo maior de todo pregador é "ganhar almas". Na altura dos doze anos, recordo-me bem, preguei um sermão (o tema não me lembro) em alguma igreja e, após o apelo final, duas pessoas foram à frente, confiar publicamente suas almas a Jesus. No final do culto, um pastor de jeito engraçado, vou chamá-lo aqui de Pastor K., me cumprimentou, dizendo: "Parabéns, meu jovem pregador! A sua pregação teve almas!". Não sei se ele recordava de alguma palavra que eu havia dito. O resultado final era o mais importante.

Há pregadores que mantêm em dia a contabilidade das almas ganhas. Não faz muito tempo, ouvi um deles se orgulhar de seus números diante dos ouvintes: "Irmãos, Deus tem abençoado muito o meu ministério. Somente no ano passado foram 365 almas, uma para cada dia do ano". Por um momento, deixei-me regressar à meninice e pensei o quanto seria difícil escrever tantos nomes em apenas duas mãos.

Não sei precisar cronologicamente, mas em algum momento da vida comecei a questionar internamente essa ideia que vou chamar aqui de "Banco de Almas do Céu": cada pessoa que eu convenço a seguir a Cristo é uma alma creditada na minha conta no céu; no Dia do Juízo, Deus emitirá um extrato e estará tudo lá . Creio que a cellula mater dos meus questionamentos quanto a esse assunto está na minha leitura do texto de João 6.44:

"Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia" (NVI)

Eu nunca converti ninguém, nunca ganhei uma alma. Por Deus, essa ideia de que se pode converter alguém... O que se pode (e isso tento fazer) é ensinar, pregar o Evangelho, testemunhar. Todas as almas ganhas, são ganhas por Cristo. Ele é o grande ganhador de almas. Todas, inclusive a minha, estão creditadas na Conta dEle. Não, queridos leitores, não é a minha retórica, a eloquência do meu discurso, a chave do coração de alguém.

Quem poderia conquistar a alma de C.S. Lewis? Ainda bem jovem, iniciou um processo gradativo de repúdio ao cristianismo e passou a desenvolver um pessimismo filosófico inquietante. Não queria acreditar na existência Deus, mas ao mesmo tempo se irritava com Ele por não existir. Enquanto lutava internamente, armado com o seu materialismo racional, contra a ortodoxia cristã, Lewis tinha a constante sensação de que o mundo não se resumia ao que pode ser percebido apenas pelos sentidos naturais; deveria haver o Outro Lado do Rio, a Transcendência, o Mistério. Para o criador de Nárnia havia um Desejo mais desejável que qualquer outro desejo que possa existir. A isso ele chamou de Alegria. Não é o mesmo que prazer, seja erótico ou estético; é algo muito maior. Comparar a Alegria ao prazer carnal era o mesmo que comparar o Sol ao reflexo dele na gota de orvalho. Assim, Lewis foi sendo cada vez mais atraído por Cristo, como a gravidade atrai todos os corpos para o centro da Terra. Então, em uma noite, domingo de Páscoa, exausto, sem ter como mais fugir, o intelectual de Oxford se rendeu ao doce poder da Graça, reconhecendo que Deus era Deus. Ele mesmo disse

"Naquela noite, quem sabe, eu era o mais deprimido e relutante convertido de toda a Inglaterra".

John Stott, em seu livro Por que sou cristão, afirma, como primeiro motivo, o fato de ter sido caçado, capturado por Deus. Ele ilustra Cristo, em Sua ação graciosa, como o "Cão de Caça do Céu". Não foi isso que aconteceu com Lewis, prostrado naquela noite em seus aposentos na Inglaterra? Não foi isso que ocorreu a Paulo, derrubado ali, sem forças, na estrada de Damasco?

Graças a Deus, posso anunciar a Cristo, sem me preocupar com a contabilidade das almas, sem a presunção de uma conta gorda no Banco de Almas do Céu...




Fonte: LEWIS, C.S. Surpreendido pela Alegria. Viçosa: Ultimato, 2015.
           STOTT, John. Por que sou cristão. Viçosa: Ultimato.










segunda-feira, 4 de maio de 2015

Feliciano fora das prateleiras


Nos meus tempos de seminarista, Feliciano era a estrela de maior grandeza entre os pregadores pentecostais. Agora, quando o nome dele é sinônimo de polêmica nacional, vem à memória um episódio interessante ligado àqueles tempos em que eu era estudante de Teologia.


Chegou ao meu quarto um aluno novo, acompanhado por um supervisor do Seminário lá em Pindamonhangaba. Este foi logo mostrando ao recém-chegado a sua cama no andar de cima do beliche, sua parcela de espaço no guarda-roupa, sua escrivaninha e as prateleiras das quais poderia dispor na única estante que dividíamos. O rapaz se apresentou brevemente e já, sem muito descanso e papo, iniciou a tarefa de desfazer as malas. Não começou pelo guarda-roupa, mas pela prateleira. Abriu uma bolsa grande e foi ajeitando, de forma muito caprichosa, os seus DVDs de pregações do Marcos Feliciano. 

Quando o novato ia acabando de organizar suas prateleiras, entrou nos nossos aposentos um aluno veterano, já cursando o seu terceiro ano, aquele tipo meio abusado, galhofeiro... Ao ver o que o calouro fazia, não perdeu a oportunidade de dar as "boas-vindas". Saiu e rapidamente retornou, trazendo uma grande sacola de lixo. Aproximou-se da estante e tomou uma atitude inesperada: foi colocando os DVDs do aluno novo, um a um, dentro do saco. Ao terminar, diante do olhar assustado e estático do pobre moço que acabara de acomodar suas relíquias, disse enfaticamente: "Aqui é lugar de se colocar livros! L-i-v-r-o-s, entendeu? Você agora é um estudante de teologia e não uma maritaca repetidora das pregações de outros!". 

O jovem seminarista era discípulo de Feliciano. Este, com o seu estilo inovador (que ia desde o sapato ao cabelo alisado), sua oratória empolgante, suas ideias teologicamente ousadas, criou uma escola homilética que influenciou centenas de pregadores. Começou a pipocar pelas igrejas pentecostais do Brasil uma turma de felicianólatras que tentavam reproduzir até a voz do seu ídolo em suas pregações. Particularmente, nunca me trouxe grande interesse (pregação, para mim, tem que provocar a reação da mente e do espírito e não a agitação do corpo). 

Não foi uma ação tão ética e cristã assim, aquela do terceiranista, é verdade! Mas, se Deus é poderoso para fazer convergir até os nossos equívocos a algum bem, posso ver positividade nisso. O aluno novo tornou-se um estudioso dedicado da Palavra de Deus, reconhecendo a Bíblia como o mais firme referencial hermenêutico dela mesma. Estabelecer o felicianismo como paradigma hermenêutico e homilético é meio arriscado. Bem, o Feliciano, quanto ao seu papel de pastor, não tenho como avaliá-lo, pois não convivo com ele em sua práxis pastoral; como político, posso dizer que não sei se se trata de vocação política mesmo ou oportunismo; mas, na qualidade de pregador, observo que suas extravagâncias hermenêuticas o desqualificam bastante.  

Terminamos com um final feliz. Os dois, veterano e calouro, se tornaram amigos, e este, ao terminar o seu curso, já contava com uma boa coleção de importantes livros teológicos em suas prateleiras. O mais curioso é que até hoje não sei que fim tiveram os DVDs. Só sei que para aquelas mesmas prateleiras nunca mais voltaram.