terça-feira, 21 de julho de 2015

Provocações Teológicas (I) : Quem não ouve "música do mundo" que atire a primeira pedra - Sobre o caso Thalles Roberto



Na última semana “viralizou” na internet um vídeo no qual o cantor Thalles Roberto dizia em um evento religioso que não mais cantaria para os evangélicos. Não demorou muito para que “pipocasse” uma enxurrada de críticas.  Em primeiro lugar quero dizer que estou muito longe de ser um “fã” do cantor. Nunca comprei seus CD´s,  muito menos ouço suas canções; não gosto mesmo. Entretanto, confesso que fiquei de certo modo curioso para ver as reações dos evangélicos nas redes sociais após o anúncio do Thalles. Li, as mais variadas frases: “Esse cantor nunca me enganou”, “desviado” “vai agora cantar música do mundo”, “Thalles agora vai cantar música secular”. É como se o Thalles deixasse de ser um cantor “sagrado” e tornasse agora um cantor “profano”, “secular”, “do mundo”.

Entretanto acredito que TODAS as músicas que ouvimos, sejam elas evangélicas ou não são do mundo; isso mesmo. Todas as músicas são do mundo. Sabe aquela música “abençoada” daquele cantor gospel “abençoado” que você tanto ouve e gosta? Aquela mesma que durante o culto você canta de mãos levantadas e até se emociona e chora? Pois é, essa música abençoada é do mundo também. O compositor dessa música escreveu-a numa linguagem do mundo (português), os instrumentos musicais eram do mundo (guitarra, violão, contra-baixo, bateria, entre outros); a plataforma a partir do qual você ouve essa música é do mundo (CD, DVD, internet, etc). Você já reparou também que os cantores evangélicos mais tocados no Brasil são de gravadoras “do mundo”? (Sony, Som livre, etc). Por isso, quem nunca ouve “música do mundo” que atire a primeira pedra.


segunda-feira, 20 de julho de 2015

As Declarações de Thalles Roberto e o Dever de Casa dos Evangélicos Brasileiros


Thalles Roberto, com seu redirecionamento vocacional para o mercado da música secular e suas declarações "nabucodonozorianas" ("vejam a grandeza da minha glória, tudo o que conquistei com a força do meu talento superior ao de todos os demais da música gospel), deixou muitos evangélicos com o coração dolorido. Diversos cantores já reconhecidos no mundo evangélico se posicionaram, uns com aquele discurso de "o que vem de baixo não me atinge", e outros com falas condescendentes e misericordiosas, do tipo "estamos prontos a lhe perdoar, quando você se converter de verdade".

Na verdade, essa mágoa e ressentimento de um expressivo número de evangélicos com o Thalles revela a imaturidade e a ingenuidade dessa gente. Eu estou aplaudindo o cantor rebelado até agora. Sabe por quê? Porque ele fez um grande favor ao movimento evangélico brasileiro. Mas, de fato, muitos fiéis não conseguiram ver a coisa por essa janela, o que confirma o pensamento que lê-se em O pequeno príncipe: "o essencial é invisível aos olhos".

O que o Thalles fez, e nisso ele prestou um grande serviço aos evangélicos que querem crescer, foi desmascarar ainda mais a ilusão que se chama "música gospel brasileira". Ao revelar os próprios pecados, ele colocou o dedo na ferida de todos os envolvidos no esquema. É por isso que, imediatamente, muitos cantores gospel fizeram questão de dizer "ai!" nas redes sociais e proteger o seu self-marketing com uma conversinha defensiva, como "ele é ganancioso, é isso, é aquilo, mas graças a Deus não sou como ele".

Thalles abriu novamente o espaço de discussão para que os evangélicos pensantes possam gritar mais uma vez e, quem sabe agora, serem ouvidos por alguns: "a música gospel no Brasil é business". Fiquem calmos, sei que há cantores evangélicos, cujas obras são expressões da arte cristã e da adoração a Deus, com sinceridade profunda e estética admirável. Mas estes, não são famosos, não vendem milhares de cópias, não ganham fortunas com cachês altíssimos; suas músicas são os acordes e os tons de uma consciência de vocação, de um chamado ao discipulado.

Muitas comunidades evangélicas agora estão se sentindo traídas, porque construíram toda a sua filosofia de dinâmica e crescimento de igreja sobre o ideal de culto modernizado com sua música gospel contemporânea. Se sentem traídas porque uma das estrelas em evidência, representante dessa categoria musical, demonstrou explícita e implicitamente, que o "ministério" desses "levitas" não passa de negócio, e a música que cantam, de produto de mercado.

A partir da década de 90 do século passado, por fatores diversos que não podemos discutir nesse texto, os evangélicos embarcaram em uma locomotiva de crescimento numérico que continua até hoje a todo o vapor. Segundo dados do IBGE, em 1991 somente 9,05% da população brasileira se identificava como evangélica. No censo publicado em 2000, 15,4% dos brasileiros declararam ser evangélicos. Uma década depois, conforme nos mostrou o censo 2010, o cenário religioso brasileiro sofreu uma redefinição incrível: o Brasil tem 22% de pessoas que seguem alguma denominação evangélica. É um crescimento explosivo de 61% em apenas 10 anos. Se as previsões do filósofo Luiz Filipe Pondé (PUC-SP) estiverem corretas, "o país, continuando na mesma batida, terá uns 50% de população evangélica em poucos anos"  (Folha de SP, 22/06/2015).

O que esses dados têm a ver com a música gospel? Trago ao meu leitor uma resposta dada por alguém que pesquisou o assunto, o doutor em Ciências Sociais Robson de Paula (UERJ). A longa citação justifica-se por sua importância na compreensão das ideias que exponho aqui.

"Tal crescimento, além de ressoar em diferentes esferas e segmentos sociais, também produz impacto na esfera do consumo. Com o objetivo de atingir esse segmento religioso, um conjunto de empresas de diferentes áreas especializou-se na produção de 'produtos evangélicos', criando, conseqüentemente, um nicho específico no mercado nacional. [...] No conjunto dessas empresas, destaca-se a indústria fonográfica evangélica. A partir dos anos de 1990, por iniciativa de alguns empresários ou denominações evangélicas, foram fundadas grandes gravadoras no país. Nessa década, a Line Records, a Gospel Records, a TopGospel e a MK Publicitá, juntamente com as rádios do segmento, passaram a imprimir um estilo industrial na produção, na divulgação e distribuição de álbuns em todo território nacional. Como contrapartida dessa atuação mais industrial das grandes gravadoras, ocorre a formação das celebridades. Até os anos de 1990, a maioria dos cantores evangélicos, salvo raras exceções, alcançava somente uma pequena e restrita audiência. Com a fundação das empresas fonográficas, alguns tornaram-se celebridades em decorrência da distribuição sistemática de seus álbuns e do acesso facilitado às mídias evangélicas". 

O que Robson de Paula está dizendo, em síntese?  O crescimento significativo dos evangélicos criou as condições ideais para a formação de um mercado dirigido para este segmento religioso, desencadeando o processo de industrialização e massificação da música tocada e produzida pelos evangélicos no Brasil. Tal processo se expressa na constituição das grandes gravadoras, no surgimento das celebridades, na variedade de locais nos quais a música é executada e na diversificação dos ritmos. Como evangélico tradicional não consome "música do mundo", os espertos perceberam o negócio fabuloso de vender "música de Deus" para essa massa consumidora em potencial.

As músicas que muitos evangélicos estão cantando em seus cultos, majoritariamente, não são adorações inspiradas, mas produtos comerciais que correspondem a uma lógica de mercado e a uma tendência do gosto do público consumidor. Por favor, não vá me dizer que você pensava que a Som Livre se converteu a Jesus? O slogan "Você adora e a Som Livre toca" é uma jogada de marketing estratégica, revestindo o consumo de produtos religiosos, bem como a inciativa da própria empresa, com uma roupagem espiritual e com um motivo devocional, cúltico. 

Termino, apenas indiciando, timidamente, o dever de casa dos evangélicos agora. Deverão sair dos cultos, ir para as suas casas e refletir o quanto aquilo que cantam individual ou coletivamente é nada mais do que produto de consumo massificado, artificial, sem integridade bíblica e profundidade espiritual, articulado com os interesses dos empresários e as tendências do mercado. Não estou sugerindo que o evangélico consciente deva destruir seus Cd's e DVD's dos famosos do mercado gospel. Minha sugestão singela é: ouça essa turma como se estivessem ouvindo qualquer outro cantor e músico secular. Isso mesmo, é tudo produto comercial; a diferença é que a música gospel usa o nome de Deus ou de Jesus ou do Espírito Santo, dando a impressão ilusória de que são mais santas, inspiradas, dádivas de louvor ao Criador. E, ainda quanto ao dever de casa, as denominações evangélicas brasileiras precisam passar por um tratamento de desintoxicação do produto químico chamado gospel. Os nossos cultos estão extremamente poluídos e contaminados. "Há morte na panela, oh povo de Deus!". Devemos repensar as músicas para a nossas liturgias, para a nossa devoção pessoal, para a nossa práxis evangelizadora.

Thalles, meu querido, que muitos outros famosos do gospel sigam seu exemplo, e usem o seus talentos para ganhar muito dinheiro e ficar ainda mais famosos; só que sem usar o nome de Deus e a paixão religiosa das pessoas.



Escrito por Jonathas Diniz em 21/07/2015 - Ipatinga/MG



Referência: DE PAULA, Robson. Os Cantores do Senhor: Três trajetórias em um processo de industrialização da música evangélica no Brasil. Revista Religião e Sociedade, nº 27, ano 2007, pp. 55 a 84. Disponível em: http://scielo.br/scielo.php?pid=S0100-85872007000200004&script=sci_arttext.


sexta-feira, 17 de julho de 2015

Não sou "Pentecosfóbico"

Um leitor enviou-me uma crítica, acusando-me de pentecosfóbico. Interessante. Trata-se de mais um verbete no dicionário de "fobias" dessa nossa democracia, onde pensar diferente faz de você "algumacoisafóbico". 

Pentecosfobia seria algum tipo de ódio contra pentecostais. Se eu odiasse os pentecostais, odiaria muita gente que jamais odiaria: meus pais participam desde a infância de um grupo pentecostal que agrega, hoje, a maior parte de fiéis desse segmento - as Assembleias de Deus; muitos parentes em linha reta ou colateral frequentam reuniões em igrejas pentecostais ou neopentecostais; conheci a minha esposa em uma igreja pentecostal (a maior contribuição do pentecostalismo feita a mim); minha irmã canta todos os domingos em um culto pentecostal; tenho amigos guardados no lado esquerdo do peito que são pentecostais. A lista pode ser muito maior, mas não é necessário.

Seu eu fosse pentecosfóbico teria que odiar milhões de brasileiros, pois - seja isso positivo ou não - a realidade é que  "o país, continuando na mesma batida, terá uns 50% de população evangélica em poucos anos", como escreveu Pondé em sua coluna na Folha no dia 22/06/2015. E sabemos que os grandes responsáveis por esse crescimento sem precedentes de evangélicos no Brasil são os movimentos pentecostais e neopentecostais. 

O ódio religioso não é uma patologia psicológica da qual sofro. Essa questão é séria. Mesmo no nosso mundo cientificamente evoluído e com tanto papo de tolerância e ecumenismo sabemos que muitas mortes ainda têm como causa conflitos de ordem religiosa. Pessoas continuam odiando e matando em nome de seu deus. Há católico que odeia evangélico e vice-versa. Há evangélico que não suporta candomblecista e vice-versa. Há muçulmano que quer expurgar o mundo da praga chamada "cristão" e vice-versa. E há o evangélico que detesta um evangélico de outra denominação que não a sua. Já vi um monte de piadinhas de humor negro feitas por tradicionais contra pentecostais e vice-versa. Tem calvinista que não consegue conversar com um arminiano e vice-versa. 

Não, meu problema não é com os pentecostais, em sua maioria gente simples e muito sincera em sua busca por um cristianismo mais piedoso, mais espiritualmente vivo. Meu problema é com os contornos que o pentecostalismo brasileiro vêm apresentando em nossos dias. Perdoem-me os pentecostais de coração, mas não posso deixar de dizer que o pentecostalismo clássico, equilibrado, coerente com as Escrituras e com a herança teológica da Reforma Protestante está em fase terminal. Até mesmo as Assembleias de Deus, guardiãs do pentecostalismo de raiz no Brasil, estão sendo devoradas pelo neopentecostalismo (com sua teologia da prosperidade, seus apetrechos ungidos, suas reuniões com muito apelo sentimental e antiintelectual, seu analfabetismo bíblico, seus pastores midiáticos e milionários, seus fiéis infantilizados e manipulados, seu clericalismo veterotestamentário, suas músicas sentimentalistas e ególatras, dentre outras tantas marcas). 

Não estou sendo categórico aqui, mas a constatação mais óbvia parece ser que o neopentecostalismo sofrerá novas mutações genéticas e sobreviverá como espécie cada vez mais forte no nicho religioso brasileiro. E mais: essa espécie permanecerá dominante sobre as demais, cravando seus tentáculos profundamente inclusive nas denominações protestantes históricas. Estas, se quiserem ser fiéis ao legado dos reformadores, terão que suportar sobreviver como grupos cada vez mais reduzidos, como ilhas isoladas no oceano, como espécies em extinção. Continuaremos experimentando um processo de neopentecostalização desenfreada no evangelicismo tupiniquim.

Não sou pentecosfóbico. A questão é que não sou simpático a um gênero de pentecostalismo que gera uma espécie de cristão esquizofrênico, biblicamente desnutrido, espiritualmente confuso e mentalmente alienado. E quanto às lideranças, como poderia eu respeitar e admirar esses milagreiros e "semi-deuses" (esse é o único título eclesiástico que falta no neopentecostalismo) que se aproveitam do poder espiritual que exercem sobre as pessoas para obterem poder político e econômico? Como não discordar desse misticismo sincrético absurdo, da confusão hermenêutica, da bagunça cúltica, da exploração comercial do sagrado, da manipulação da consciência?

Sinais de esperança no horizonte do pentecostalismo aparecem aqui e acolá, como é o caso da Assembleia de Deus de Herança Reformada em Maringá-PR, que conheci através do meu blog. É uma igreja nascente que busca a síntese entre um pentecostalismo clássico não neopentecostalizado e a tradição teológica da Reforma Protestante. 

Assim como não sou pentecosfóbico, também não sou tão pessimista assim. Há muitos pentecostais conscienciosos que estão percebendo que o trem do pentecostalismo em algumas igrejas já descarrilhou há muito tempo. Citando Nicodemus, acredito que "quem sabe os pentecostais não estejam predestinados a avançar bastante a teologia da Reforma no Brasil?".



quinta-feira, 9 de julho de 2015

Sobre as mulheres "feias" de igrejas bonitas

Igreja deve ser um lugar onde nossas feiuras se tornam belezas. Não só belezas da alma, pela ação do Espírito Santo em nós, nos transformando segundo a imagem bela de Cristo Jesus, o que a teologia cristã chama de santificação. Mas a igreja deve ser lugar de belezas exteriores também, do cultivo de uma estética do corpo.

Não estou defendendo o narcisismo,o exibicionismo, nem o culto ao corpo. O que quero defender aqui é que "feiura" não tem nada de enlevo espiritual. Sou contra o enfeiamento religioso das pessoas. É isso mesmo. A religião pode "enfeiar", ou melhor, tem muita gente feia, religiosamente falando.

Essas feiuras religiosas podem ser internas (estética da alma), como por exemplo aquelas pessoas que são religiosas "de carteirinha", mas são mesquinhas, mentalmente depravadas, arrogantemente individualistas, moralmente liberais...

E há as feiuras externas (estética do corpo), como por exemplo aquelas pessoas religiosas que pensam que ser "espiritual" tem a ver com ser feio, mal vestido, desengonçado, esquisito, apagado, de semblante carregado. Os fariseus dos tempos de Jesus não achavam que, ao jejuarem, tinham que se apresentar em público descabelados, ostentando piedade através da exibição da feiura?  

E, infelizmente, são as mulheres as principais vítimas desse "enfeiamento" religioso externo. Porque a beleza é um dom dado às mulheres (os homens podem ser no máximo "gente boa"). Mas as religiões podem contribuir para eclipsar a beleza feminina, principalmente algumas vertentes mais carrancudas do pentecostalismo no Brasil ("pentecoschatismo").

Pergunto:  que demônio há em um estojo de maquiagem?; que pecado há em um par de brincos? que escândalo há em um corte de cabelo?; que maldição traz para uma mulher uma calça?

Confesso a vocês que acho extremamente cansativa qualquer discussão em torno do problema de encontrar ou não encontrar alguma proibição bíblica ao uso de calça por mulheres. Não tenho paciência mais. E tenho pena (falo sem arrogância) das moças de igreja que vivem em angústia interna, moral, espiritual e existencial, por causa dessas chatices.

E arrisco fazer uma previsão drástica: os pastores e líderes de igrejas que acham que a atividade pastoral se resume ao papel de fiscal ou controlador do comportamento individual dos fiéis estão destinados a se tornarem obsoletos, pastoreando igrejas mirradas.

Não estou dizendo, isso é bom deixar claro, que não caiba aos pastores a orientação moral e espiritual das pessoas que pastoreiam, com base em inconfundíveis princípios cristãos. Mas caudilhismo pastoral não deve ser tolerado. O apóstolo Pedro já dizia que os pastores não devem ser dominadores do rebando.

Não faz muito tempo, convidado por um amigo, entrei em uma igreja nova, muito linda, de uma arquitetura deslumbrante. Mas o discurso do líder era horrível e mofado. Dessa parte eu me lembro muito bem: "As irmãs que forem pegas  usando jóias (esses adereços do diabo) serão impedidas de participar da Ceia do Senhor [Comunhão ou Eucaristia, como se diz em outros ramos do cristianismo]". A única coisa diabólica que vi na igreja era o próprio discurso pastoral. Pelo amor de Deus, não dá mais para a gente ouvir umas coisas dessas.

Mulheres evangélicas, eu vos escrevi porque sois belas, e a Palavra de Deus permanece em vós, é já vencestes o maligno. Pecado é deixar-se enfeiar pela manipulação religiosa; diabólica é a alienação religiosa; escandaloso é a liberdade do Evangelho sendo negada por fariseus que querem colocar sobre os ombros dos fiéis fardos pesados e difíceis de suportar, porém nem com o seu dedo estão dispostos a movê-los.



sábado, 4 de julho de 2015

"Quem Sou Eu?" Por Dietrich Bonhoeffer

Nesses tempos em que buscamos seguidamente auto-promoção, o self-marketing, desesperadamente preocupados em "sair bem na foto", exibindo um "eu" que, muitas vezes, nada tem a ver com quem somos, mentindo o tempo todo para nós mesmos,  vale a pena ler esse maravilhoso poema de Dietrich Bonhoeffer que apresento a seguir. 

Aqui, o teólogo-mártir alemão caminha pelos labirintos da sua alma, buscando a resposta sincera e íntima à pergunta essencial: "quem sou eu?".

Bonhoeffer foi muito mais que um teólogo de gabinete ou um pastor preocupado apenas com "almas". Ele decidiu levar o discipulado cristão até às últimas consequências, desafiando o poder nazista e denunciando a igreja ofial alemã que, por amor a Hitler, negou  a Cristo. Foi enforcado pelos nazistas aos 38 anos de idade.


Quem sou eu?*




Quem sou eu? Seguidamente me dizem
que saio da minha cela
tão sereno, alegre e firme
qual dono de um castelo.

Quem sou eu? Seguidamente me dizem
que da maneira como falo
aos guardas, tão livremente,
como amigo e com clareza
parece que esteja mandando.

Quem sou eu? Também me dizem
 que suporto os dias do infortúnio
impassível, sorridente e com orgulho
como alguém que se acostumou a vencer.
Sou mesmo o que os outros dizem de mim?
Ou apenas sou o que sei de mim mesmo?
Inquieto, saudoso, doente,
como um passarinho na gaiola,
sempre lutando por ar, como se me sufocassem,
faminto de cores, de flores, às vezes de pássaros.

Sedento de palavras boas, de proximidade humana, 
tremendo de ira a respeito da arbitrariedade
 e ofensa mesquinha,
nervoso na espera de grandes coisas,
em angústia impotente pela sorte de amigos distantes,
cansado e vazio até para orar, para pensar, para produzir,
desanimado e pronto para me despedir de tudo?

Quem sou eu? Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro? Sou porventura tudo ao mesmo tempo?
Perante as pessoas um hipócrita?
E um covarde, miserável diante de mim mesmo?
Ou será que aquilo que ainda em mim perdura,
seja como um exército em derradeira fuga,
à vista da vitória já ganha?

Quem sou eu?
A própria pergunta nesta solidão
de mim parece pretender zombar.
Quem quer que sempre eu seja,
tu me conheces, ó meu Deus,
SOU TEU.

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945)



*Extraído da biografia de Bonhoeffer escrita por Eric Metaxas: "Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta e espião". Editora Mundo Cristão.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A Fé e a Cidade



Seria uma tarefa difícil, para não dizer impossível falar de vivência cristã sem mencionar a fé, tendo em vista que o cristianismo tem como fundamento a fé em Jesus. Sendo assim, é sobre a fé que gostaria de falar aqui. Entretanto, não me refiro àquela fé que é potencializada de “dentro para fora”. Mas alguém pode perguntar: o que é uma fé de “dentro para fora”? É um tipo de fé baseada no “eu tenho que fazer”: tenho que orar, tenho que jejuar, tenho que consagrar para ter mais fé.  Não trato dessa fé aqui.  Quero falar de uma fé que é potencializada de “fora para dentro”. Mais uma vez alguém pode questionar: o que é uma fé de “fora para dentro”? É um tipo de fé que surge a partir dos desafios e problemas da vida cotidiana e que me levam a querer “ser”, “conviver” e “agir”.
Quase sempre pensamos a fé como algo que move a Deus. Não! Fé não move a Deus! Fé move a mim mesmo e me leva a “ser”. Mas “ser” o que? Diante dos desafios do nosso tempo é ser alguém comprometido com a justiça, com os problemas da cidade. É ter consciência que problemas como violência doméstica, injustiça, discriminação dizem respeito a nós e como cidadãs e cidadãos podemos sim, ajudar no enfrentamento desses problemas. Portanto, a fé me leva a ser!
Uma fé baseada no individualismo, num primeiro momento pode parecer forte, mas no fundo ela é fraca por ser egoísta. Quando alguém enche o peito e brada num alto e bom som: “Eu recebo”, “eu tomo posse”, pode parecer um “super-crente” para usar a expressão de certo teólogo. Entretanto ele é fraco, pois sua oração vai na contramão daquilo que Jesus disse “Venha a nós o teu Reino”. Nesse contexto, a fé é potencializada num ambiente comunitário; ela se solidifica na convivência. Entretanto, essa convivência não é apenas num templo religioso, ou seja, com os que são “de dentro”. Temos que ter a coragem de estabelecer pontos de contato com os que são “de fora”: as crianças órfãs e abandonadas, os adolescentes em situação de risco social (você sabia que é alto os indicies de depressão e suicídio entre adolescentes?) e todos aqueles que vivem “a beira do precipício “existencial”.
E por fim, a fé me leva a ação. Você não precisa ser um vereador ou deputado evangélico para agir ou defender os princípios do Reino de Deus (aliás, Deus não precisa de defensores ou apologistas, mas essa é uma outra história). A igreja, enquanto corpo nunca precisou de representantes no parlamento. John Wesley, o fundador do metodismo disse uma frase que ficaria famosa no decorrer dos anos: “O mundo é a minha paróquia”. Parafraseando Wesley podemos dizer hoje: “A minha cidade é a minha paróquia”. Desse modo, os problemas de nossa cidade como injustiça, fome, violência, podem ser combatidos mediante a nossa atuação, pois são esses elementos que potencializam a nossa fé e nos move a agir.

Osiel Lourenço