sábado, 6 de junho de 2015

Pastor: produto de (final) de feira

Esta é a sensação que tenho quando observo em que o ministério pastoral se tornou em muitos contextos dessa nossa igreja evangélica brasileira: descaracterização, vulgarização, barateamento.

Vou tentar, caro leitor, explicar o que isso tem a ver com o título que coloquei acima. Na tradicional feira de sábado em Itaperuna, onde os agricultores vendem seus legumes e frutas, a gente tem uma oportunidade de ver os amigos, comprar coisa boa a preço bom, comer pastel com caldo de cana, em meio ao empolgante falatório e mistura de rostos, cores e cheiros. É bom! Quando vai chegando o final da feira, os feirantes ficam mais "generosos", querem voltar para casa com os caixotes vazios e aí é hora de comprar três dúzias de bananas pelo preço de uma. Vai ficando tudo mais barato...

Vejam, nunca foi tão fácil ser pastor. Aliás, ser pastor é algo tão barato e comum (banana nanica no final de feira) que a moda agora (para os "vocacionados" espertalhões) é ser apóstolo, arcanjo, patriarca e outros títulos mais honrosos, de maior expressão. "Para mantermos nossos distintos privilégios, temos que criar títulos de distinta honra", está aí a filosofia da coisa. Banalidade pura...

"O mercado religioso está repleto de milagreiros, de gente produzindo respostas, e todos eles dizem ter credenciais outorgadas por Deus" (Eugene Peterson).

Adolescente, Ensino Médio concluído, não divisava outro horizonte a não ser o Seminário Teológico e o ministério pastoral. Não me ocorria nenhuma outra inclinação, nenhum interesse significativo por Medicina, Direito ou Engenharia. Apaixonado por Bíblia, por púlpito e por gente, percebia em mim (não por "profecia" alguma, mas por convicção pessoal) uma vontade, ou talvez aquilo que Aristóteles chama de "potência", de ser pastor. Acho que por isso o rumo das coisas me entristece tanto... 

Mas hoje vivo em plena crise, tentando manter viva a vocação e discernir com maior clareza que é ser pastor no meio do nevoeiro que existe. Nessa luta pela afirmação de uma identidade biblicamente pastoral, Eugene Peterson (um dos pastores com quem mais aprendo o que é ser pastor) tem me ajudado bastante. Peterson, em sua autobiografia "Memórias de um Pastor", conta que o desabrochar de sua vocação pastoral ocorreu não sem muita crise. Crise porque, durante sua infância e adolescência, a imagem de pastor que foi se internalizando em sua consciência era a pior possível. Na comunidade eclesiástica onde ele foi criado (uma Assembleia de Deus interiorana nos Estados Unidos), os pastores não ficavam o tempo suficiente para construírem relacionamentos verdadeiros com as ovelhas, seus conselhos tinham tons de condescendência, superioridade e paternalismo, seus sermões eram teologicamente pobres, repetitivos, chatos. Ele mesmo confessa:

"Não dera muita sorte com os pastores que tive. Não gostava da maneira condescendente com que eles me tratavam, não gostava do tom clerical com que pregavam e oravam, não gostava dos clichês que infectavam o vocabulário deles. A religião, da forma que eles a apresentavam, não tinha seiva. [...] Eu respeitava as Escrituras. Jesus para mim era assunto sério. A igreja também, assim como a oração, mas não os pastores. Em geral, eles pareciam não ter nada a ver com tudo isso".

Ser pastor era a última coisa que Peterson escolheria. Por isso, quando Deus o surpreendeu, irrigando com as gotas da Sua vontade soberana as sementes da vocação pastoral plantadas em seu coração, Peterson relutou, a princípio, pois tudo isso lhe era paradoxal demais. Ele assumiu o seu chamado, estando disposto a aprender, na experiência desafiadora, relacional e crítica de pastoreio de uma comunidade local, a ser um pastor segundo o coração de Deus e não um profissional da religião, a conceber o pastorado como uma vocação espiritual e não "uma oportunidade de negócio que atenderia ao gosto de consumo de pecadores".

Círculos denominacionais mais ligados à Reforma e também alguns pentecostais históricos buscam preservar a dignidade do ministério pastoral ainda, seja preparando melhor teologicamente seus pastores, seja mentoreando-lhes espiritualmente mais de perto, seja avaliando melhor suas reais condições de serem pastores de almas. Mas em outros contextos, especialmente em grupos neopentecostais ou neopentecostalizados (não estou generalizando aqui), não há muitos critérios bíblicos. Além do pragmatismo mercadológico, do profissionalismo, do marketing pessoal e do oportunismo financeiro, destaco outras coisas que ridicularizam o pastorado: 

a) pastor, não como vocação específica, mas como patamar em uma escala hierárquica denominacional;
b) a ordenação pastoral como troca de favores, pagamentos ou gratificações por parte de líderes manipuladores e narcisistas (é o caso de pastores presidentes que consagram outros pastores a fim de terem mais aliados políticos e bajuladores em seus governos autocráticos);
c) pastores sendo ordenados por questões de poder econômico ou influência política e social (o fato de alguém ser um Juiz de Direito já o torna automaticamente um forte candidato ao ministério?);
d) a indolência e a ociosidade de muitos pastores;
e) os escândalos morais de larga repercussão;
f) a falta de preparação teológica formal e o analfabetismo bíblico;
g) a superficialidade da devoção espiritual;
h) a manipulação inescrupulosa de textos bíblicos para defesa de vontades pessoais por parte de pastores autoritários ou oportunistas, dentre outras coisas.

Um pouco antes de escrever esse texto, apaguei uma mensagem da minha caixa de e-mail. Tratava-se de um anúncio em letras garrafais: 

CURSO DE PASTOR! REALIZE SEU SONHO E ABRA SUA PRÓPRIA IGREJA! OFERECEMOS DIPLOMA E CREDENCIAL RECONHECIDA INTERNACIONALMENTE!

Sei que os pastores mais éticos e conscienciosos ficam indignados. Há muitos pastores que eu me recuso a reconhecê-los como tal. Há muita coisa que deixa os pastores de verdade envergonhados. E infelizmente, a sociedade secular é impiedosa e não faz distinção em seus julgamentos: "é tudo farinha do mesmo saco". E como agravante, temos o fato de que a maioria da manada é simplória, massa precariamente evangelizada e que pouco se importa com as reais competências de seus pastores, desde que estes funcionem como bons gurus espirituais e garantidores de bençãos desejadas (o perfil do pastor é o perfil de sua igreja). Aí, aos pastores de compromisso e de vocação, só lhes resta suportar, aguentar firme e buscar inspiração em exemplos que prestam.

Particularmente, a vida pastoral de Jesus, a doutrina pastoral de Paulo e a teologia pastoral  de Eugene Peterson têm sido bússola na minha vivência vocacional. Não seria justo da minha parte, se esquecesse de mencionar o querido Padre Zóssima (personagem de "Os Irmãos Karamázov" de Dostoiévski), cuja sabedoria pastoral me toca essencialmente toda vez que leio essa monumental obra dostoievskiana. Em Zóssima encontrei um sopro renovador da beleza e da profundidade de ser um pastor de almas.





Referências: Todas as citações de Peterson foram extraídas de sua obra Memórias de Um Pastor, publicado no Brasil pela editora Mundo Cristão.

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